Sobrelinhas – por Carla Kühlewein
É bem provável que você já tenha assistido à versão dos Estúdios Disney do livro clássico de Lewis Carroll ‘Alice no país das maravilhas’. De certa forma, ela foi a responsável por eternizar em nossa memória a imagem da menininha loira, pálida, de lábios vermelhos, vestido azul e avental branco.
Tim Burton, o notável diretor de filmes como ‘Edward mãos de tesoura’ e o escabroso musical ‘Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da Rua Fleet’, bem tentou desconstruir esse estereótipo com sua visão peculiar da história, em 2010. O filme de Burton emplacou, mas sua Alice amadurecida e nebulosa está longe de substituir a loirinha do bom e velho Walt Disney.
Na verdade, pouco importa se somos mais influenciados por esta ou aquela versão, ambas ficam aquém das inúmeras possibilidades do texto original de Carroll. Vejamos um exemplo: o livro detalha que Alice tinha a mania de fingir ser duas pessoas. Quando ela consegue realizar esse intento (crescendo quando comia e encolhendo quando bebia) começa a se questionar sobre sua própria existência:
“Puxa! Puxa! Como está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é: quem sou eu?” (Trecho retirado da edição primorosa lançada pela Editora Salamandra, publicada em 2010 e ilustrada por Helen Oxenbury).
As várias perguntas que Alice faz pra si mesma é praticamente um exercício filosófico. Cá entre nós, se a vivência no país das maravilhas leva a menina a fazer reflexões tão profundas, será que ficar por lá é tão divertido quanto imaginamos? Até onde sabemos, Alice visitou o tal país dormindo. Mas a sensação que temos é de que o sonho foi bem real…
A grande “sacada” de Carroll está justamente no modo imaginário como retrata um desafio essencialmente humano: ser/estar no mundo. No fim das contas, descobrir quem somos pode custar noites mal dormidas e a consciência de que (acordados ou não), volta e meia, estamos fadados a ingressar no mundo de Alice, repleto de Rainhas a nos controlar e de Chapeleiros a nos desviar do rumo.
PS: Tenho uma irmã que se chama Alice e uma amiga que chamo assim por afeto, a qual me presenteou com a edição primorosa mencionada aqui.
Carla Kühlewein é graduada em Letras Vernáculas e Clássicas (UEL), Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (Unesp) e Doutora em Literatura e Vida Social (Unesp).