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Um capelão entre emigrantes em alto mar

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Memórias do Padre Zé

A emigração tem sido uma experiência muito dura para muitas famílias, inclusive para a minha. Mas, ao mesmo tempo, tem sido salutar porque proporcionou vida melhor para essas famílias, principalmente depois de duas guerras mundiais que assolaram a Europa durante a primeira metade do século XX. Como já tive oportunidade de relatar anteriormente, meus familiares tinham escolhido a Austrália para construir futuro mais promissor para si e para seus entes queridos, um vez que minha terra natal, a Ilha de Malta, não tinha suficientes recursos para sustentar seu povo. Além dos tios, também meu pai emigrou para a Austrália em 1952 com a intenção de levar toda a família mais tarde. Eu tinha 9 anos quando ele partiu. Partida dolorosa! Despedida da esposa e dos cinco filhos, ainda pequenos! Rompimento com os afetos familiares e com o ambiente em que tinha sido criado! Incerteza do futuro, mesmo que tenha sido promissor! Me lembro, com aperto no coração, dos anos seguintes, nas noites de lua cheia, minha mãe, querendo matar a saudade, uma vez que não tínhamos nenhum meio de comunicação, subir na varanda da nossa casa e passar um bom tempo imaginando que a mesma lua que ela via também estava sendo vista pelo meu pai lá longe e, então, suspirava: “Ó lua, você que está vendo meu Spiros, diga-lhe que nós o amamos e que sempre pensamos nele”. Assim, encontrava sossego e até pensava que a lua piscava pra ela…Coitada!

Passaram alguns anos e, em 1961, também quis emigrar como missionário no Brasil. Mesmo imbuído por uma grande fé e forte espírito missionário, sofri muito com a separação. Me lembro como foi difícil passar a última noite em casa… olhava para todos os cantos da casa e da casa da minha avô Ângela e minhas tias Maria, Margarida e Dolores, para estampar tudo em minha memória. De Malta para o Brasil foi uma mudança muito grande: lugares, costumes, língua, comida e gente, tudo diferente! Quanta saudade! Aí, repetia o hábito da minha mãe: nas noites de lua cheia no jardim do Seminário Maior de Curitiba, eu olhava a lua, imaginando que minha mãe em Malta e meu pai na Austrália, estavam vendo a mesma lua, e suspirava: “Ó lua, diga aos meus queridos que eu os amo e sempre penso neles”. E me tranquilizava!

Depois de ordenado padre em 1965, fui nomeado pároco da Paróquia Santo Antônio de Pitangueiras e, em 1969, transferido para Rolândia. Naquele tempo, os padres não recebiam salários fixos e não tinham registro. Viviam com as espórtulas dos paroquianos. E as obras da Paróquia eram mantidas com as campanhas de café e cereais e com as quermesses. A saudade dos familiares, especialmente dos irmãos que não os encontrava há 10 anos, foi aumentando. Mas eu não tinha dinheiro para pagar uma passagem para a distante Austrália. Me ocorreu, então, recorrer a uma padre de Malta, Monsenhor Philip Caleja, que era coordenador da Comissão Arquidiocesana para os Emigrantes, para me possibilitar o cargo de “capelão” num navio de emigrantes de Malta até a Austrália.

Deu certo! Fui com avião da Varig de São Paulo para Malta, onde embarquei com o navio italiano “Achille” da linha “Lauro” no dia 3 de setembro de 1971, acompanhando 150 emigrantes malteses como capelão. O navio ia percorrer o seguinte trajeto: Malta – Messina – Napoli – Génova – Tenerife (Ilhas Canárias) – Capetown (África do Sul) – Fremantle (Austrália) – Melbourne, onde desembarquei. Além dos malteses, havia também muitos ingleses e irlandeses, alguns holandeses, alguns italianos e três famílias portuguesas da Ilha da Madeira, totalizando 1.200 passageiros, todos emigrantes. Ao sair da Europa pelo estreito de Gibraltar, o comandante Leopoldo Cafiero me confiou também o cargo de “Comissário de Bordo” para resolver questões que poderiam surgir entre passageiros das línguas maltesa, inglesa e portuguesa, especialmente com os passaportes nos respectivos portos. Eu celebrava missa todos os dias em inglês na Capela do navio, com exceção em tempos de tempestades marítimas, pois era impossível segurar os vasos sagrados parados sobre o altar. Também devia me misturar, com muita frequência, com os passageiros para ouvir suas lamentações e tentar dar soluções. A própria direção do navio me passava uma mesada semanal para poder pagar um “drink” e acalmar alguns ânimos mais exaltados, que acontecia frequentemente.

Me lembro de uma ocasião que me deixou transtornado: estávamos eu e um grupo de jovens malteses sentados em torno de uma mesa na grande sala do convés, quando uma menina, bem loirinha, de uns 6 anos, chegou ao balcão do bar e pediu um refrigerante ao atendente, um jovem italiano. E o jovem, querendo ser gentil, perguntou-lhe: “Criança bonitinha, de que pais você é?” E ela respondeu: “Irlanda”. E o jovem disse: “Que belo, católica como eu”. Ora, o pai dela, que estava jogando baralho com um grupo de irlandeses numa mesa ao lado, ouvindo a conversa, se levantou irado e gritou: “Que o Papa se dane!” Imediatamente, os outros se levantaram para rebater a agressão verbal e começou a confusão. Veio, então o segurança e me disse: “Padre capelão, este é trabalho seu! Dê um jeito nesta situação”. Que situação, meu Deus! Criei coragem e cheguei perto deles e gritei: “Vocês todos são uma idiotas! Esta é uma criança que não tem nada a ver com a situação política caótica que tem na Irlanda de vocês. Pois, vocês estão fugindo daquela bagunça, procurando um lugar tranquilo para iniciar uma vida nova. Vamos brindar a Austrália, nova pátria de vocês”. Chamei o garçom e pedi umas cervejas para eles brindarem amigavelmente. Acontece que, naquela época, estava havendo litígios sérios na Irlanda. O país era dividido em 20 condados: os 15 do Sul, com maioria católica, era uma República independente. Os 5 condados do Norte, com maioria protestante (Anglicanos), fazia parte do Reino Unido. A minoria católica do Norte, sob a liderança da deputada Bernadette Devlin, católica liberal, queria anexação com a Irlanda do Sul. E a maioria protestante, liderada pelo deputado Ian Paisley, conservador, queria união definitiva com a Inglaterra. E esta briga chegou até o navio.

Em outra ocasião, veio me procurar o policial da ronda noturna do navio para me contar que, enquanto fazia a ronda, havia observado que, numa cabine de 4 pessoas, tinham entrado 5. Foi verificar e descobriu que o quinto era um moço clandestino, isto é, não estava na lista dos passageiros e, portanto, estava fugindo de algum lugar. E, como o moço não sabia falar italiano nem inglês, o policial achava que eu devia dar um jeito. Fui falar com o moço, do tipo intelectual, mas não entendia nenhuma das línguas que eu conhecia: inglês, italiano, maltês, português, francês, espanhol…nada. Aí, me passou pela cabeça a última língua que eu podia chutar: o latim! E lembrei da missa em latim: “Adiutorium nostrum in nomine Domini” (Nosso auxílio está no nome do Senhor) e ele respondeu: “Qui fecit coelum et terram” (Que fez o céu e a terra). Assim fiquei sabendo que seu nome era Igor Marinkovic, que tinha fugido da Tchecoslováquia durante os distúrbios políticos da “Primavera de Praga” em 1968. Com as manifestações públicas de milhares de universitários e intelectuais contra as ingerências do comunismo soviético, o governo de Alexander Dubcek defendia a ideia de promover um socialismo com rosto humano. Nosso Igor lutava pela liberdade do seu país! Mas sentia-se ameaçado e fugiu. O que fazer com ele? De acordo com a lei dos mares, um clandestino deveria ser entregue nas mãos da justiça do próximo porto que era Capetown (Cidade do Cabo), África do Sul, que, naquela época, também estava passando pelas turbulências políticas do “Apartheid”. Então, junto com o comandante Caffiero, telegrafei para a representação diplomática da Tchecoslováquia do primeiro porto australiano, Fremantle, para explicar o caso e saber o que poderíamos fazer para ajudar seu conterrâneo. Felizmente, o Cônsul entendeu a situação porque compartilhava com os mesmos ideais. Prometeu acolhê-lo e protegê-lo pessoalmente ao chegar no porto. Em ação de graças, Igor e eu rezamos juntos o Pai Nosso em latim.

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