Memórias do Padre Zé
Estando eu na casa da minha irmã Rita em Kensington, Melbourne, veio me visitar meu primo Frank, o qual morava no outro lado da cidade, em Ferntree Gully, e este me convidou para passar uns três dias na casa dele para conhecer sua família. Fui muito bem recebido pela sua esposa, Mary Ann, e seus quatro filhos. No dia seguinte, Mary Ann me levou à casa dos pais dela, de origem holandesa, para o chá da tarde. Entre uma conversa e outra, a mãe me falava dos transtornos que o filho Frits, de 19 anos, lhe causava, pois ele fazia parte de um grupo (gangue) de motoqueiros, com quem ficava dias fora de casa, sem sequer dar notícia. De repente, ouvíamos o ronco da moto, e ela disse: “Que sorte! Ele está chegando. Que bom que vai conhecê-lo!”. De fato, ele entrou na sala trajando calça de couro preto, colete de couro com emblema de caveira bordada nas costas e capacete na mão; cumprimentava a todos, simplesmente com “oi, oi”. A mãe, com toda ternura, lhe disse: “Olha, filho, este senhor é amigo da família e mora no Brasil”. Como que acordando de um sonho, ele olhou para mim e disse: “Oh! Brasil! País maravilhoso! Gostaria de conhecer este país!”. E continuou perguntando para mim: “Você gosta de moto? Quer dar uma volta?”. Eu estava ainda com 28 anos de idade, mas nunca tinha andado de moto, nem moto tinha aqui em Rolândia naquela época; apenas algumas motoquinhas “Garelli”. Entretanto, respondi: “Sim”. Ele foi buscar colete e capacete… e lá fui eu montar numa grande moto “Honda”, sem saber como deveria me comportar. Um loucura! Meus pés tocavam o chão conforme ele fazia as manobras para virar rápido nas curvas da estrada. E foi me apresentando a um e outro dos seus amigos, integrantes da mesma gangue (grupo) chamada “Phantoms”, composta por aproximadamente 70 membros. O último que fomos cumprimentar era o líder do grupo, apelidado de “Spunky”, o qual disse a Frits: “Traga seu amigo junto no “motocross” do próximo sábado, pois ele já faz parte do Grupo”. Naquela época, anos 60 – 70, havia várias gangues de motociclistas; as mais conhecidas, internacionalmente, eram “Hells Angels”, “Road Rebels”, “Warlock”, originárias dos Estados Unidos, que tinham fama de “fora da lei” por seu comportamento violento. Mas, os meus “Phantoms” eram australianos pacíficos e tinham atitudes diferentes: forte sentimento de liberdade, viagens e passeios com suas motocicletas, confraternizações, promoções em favor de entidades beneficentes, ajuda mútua pessoal, etc.
Aí, chegou o sábado, e Frits Maaten foi me apanhar na casa da minha irmã, a qual quando viu o jeito dele, braços tatuados e com aquela roupa estranha, ela me disse: “Você é maluco! Como tem coragem de andar com esta gente?”. Os outros integrantes dos “Phantoms” foram se juntando dos mais variados pontos de Melbourne até formarem fila dupla, com o líder na frente, por aquelas auto estradas do Estado de Victória. Ao avistarem a fila das motos, os carros iam se encostando, esperando os motoqueiros passarem. Nos dois lados da estrada, centenas de periquitos, cacatuas e papagaios competindo as árvores de eucaliptos com os coalas, enquanto as motos tinham que desviar de um ou outro canguru que se aventurava de saltitar no meio da estrada. Depois de duas horas de trajeto, chegamos num sítio onde o grupo tinha uma grande tenda de lona denominada “Phantoms Country Club”, descarregaram suas mochilas, caixas de latas de cerveja, salsichas e pão e sacos de dormir. Já eram dez horas da noite, todos sentados no chão formando uma grande roda, pegaram seus violões e começou a serenata noturna, cantando músicas country da época: “Hang down your head Tom Dooley”, “Walzing Matilda”, “Do not forsake me”, etc. Nenhuma briga, nenhuma confusão, nenhum excesso! Eram em torno de 70 moços! Fiquei encantado com seu comportamento. A verdade é que ninguém pode julgar ninguém pelas aparências. Somente Deus nos conhece por dentro.
No dia seguinte, Domingo, fomos num lugar bem acidentado, onde devia haver uma competição entre diversas gangues daquela região, chamada “motocross”. Eu estava na garupa do líder, bem na frente, quando na entrada do local, eu percebi a movimentação de alguns motoqueiros de outro grupo saindo por detrás de um frondoso arbusto e avisei o líder. Ele olhou e gritou: “são os Hells Angels”, deu sinal para todos virarem as motos e fomos para outra entrada, bem distante. É que os “Hells Angels” tinham tido uma briga com os “Phantoms” e estavam espreitando para se vingar. No fim, tudo acabou bem! No dia 29 de janeiro de 1972, fui com os “Phantoms” ao primeiro “Sunbury Rock Festival” da Austrália. Com a presença de 35 mil pessoas de todo o País e outros países da Oceania. Tudo muito bem organizado! Me lembro bem que a primeira banda que apareceu no palco era ‘The Mamas & the Papas’ com seu sucesso ‘Mamy Blue’. Foi aquele furor, gritaria e entusiasmo!
No dia 31 de janeiro de 1972, eu devia estar, de tarde, no porto de Melbourne para embarcar no navio “Achille Lauro” de volta para a Europa. Estava trajado com terno e colarinho clerical e cruzinha de padre na lapela. De longe, avistei um grupo de uns 10 motoqueiros se aproximando do cais onde o navio estava atracado. Eram do Grupo “Phantoms” com meu amigo Frits Maaten como líder. Fui ao encontro deles e Frits foi logo dizendo: “Viemos nos despedir. Ah! Você é religioso?” Respondi “Sim”. E ele: “Porque nunca nos falou?” E eu: “Porque nunca me perguntaram”. E ele novamente: “Não importa a profissão! O que importa é a amizade. Agora, somos mais amigos. Ah! Obrigado por ter estado conosco e ter nos aceito do jeito que somos. Obrigado pelo belo exemplo de vida que transmitiu a todos nós com seu comportamento!” Emocionado, Frits arrancou o emblema dos “Phantoms” das costas da jaqueta do colega e a passou para mim para selar nossa amizade para sempre. E nos abraçamos fortemente! O policial que fiscalizava a entrada do navio ficou comovido com esta manifestação de amizade verdadeira.
De volta a Rolândia, pensei em formar um grupo “Phantoms” com os poucos motoqueiros que aqui tinha. Deu certo! Começamos com missa e bênção das motos na praça da Igreja Matriz. Com o passar dos anos, o grupo foi crescendo e assumindo os ideais do grupo australiano. E começamos a organizar os grandes encontros, anualmente, no espaço do Centro Esportivo “Emílio Gomes”. Num destes encontros, veio da Austrália meu amigo Frits, que tinha sido fundador dos “Phantoms” de Melbourne, o qual entregou aos nossos “Phantoms” seu primeiro e original colete, sobre o qual ele escreveu: “uma causa que jamais morre”. Estavam presentes, nesta ocasião, um mil e trezentas motos de 4 Estados do Sul do Brasil.