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Em três anos, feminicídio vitimou 368 meninas e adolescentes no Brasil

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Estudo do Unicef e FBSP identificou incidência do feminicídio entre meninas brasileiras entre 2021 a 2023 e traz alertas

Ato em memória de meninas vítimas de feminicídio/Arquivo Néias-Observatório de Feminicídios/2024

Por Cecília França – Rede Lume

Em 11 de maio de 2023, o Ministério Público do Paraná (MPPR) denunciou Givanildo Rodrigues Maria, de 33 anos, pelo feminicídio de sua enteada, Kameron Odila Gouveia Osolinski, de 11 anos, cometido no mês anterior, em Guaraqueçaba, litoral do estado. O homem confessou ter asfixiado a menina durante um estupro.

Kameron integra uma triste estatística exposta pelo estudo Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, desenvolvido pelo Unicef em parceria com o Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP) e publicado em agosto. De acordo com os números, em três anos (de 2021 a 2023), 15.101 crianças e adolescentes de até 19 anos foram vítimas de mortes violentas no Brasil, sendo 1.508 meninas. No mesmo período, 368 desses casos foram identificados como de feminicídio, ou seja, 24,4%.

O ápice da violência de gênero vitimou 28 meninas entre 0 e 4 anos; 20 entre 5 e 9 anos; 56 entre 10 e 14 e 264 entre 15 e 19 anos.

Para a socióloga Silvana Mariano, coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), meninas estão mais vulneráveis a violência na nossa sociedade por uma intersecção de fatores.

“Nossa sociedade é adultocêntrica, o que significa que ainda precisamos avançar no reconhecimento das meninas como sujeito de direitos. E também precisamos avançar na compreensão de gênero como organizador de práticas sociais violentas. Quando estreitamos nossa visão da violência de gênero como sinônimo de violência nos relacionamentos íntimos, na conjugalidade, nós ocultamos como, por exemplo, as experiências das meninas também são gendradas”, explica.

Casos ocultos

O relatório do Unicef e FBSP aponta que houve queda no número de feminicídios entre meninas de 0 a 9 anos no período analisado (2021-2023), porém, registrou-se aumento das lesões corporais seguidas de morte. “O homicídio doloso continua a ser o principal tipo penal, variando de 84,2% a 88,8%, sem grandes mudanças ao longo dos anos. As variações que podem ser observadas dizem respeito à queda dos feminicídios na faixa etária, que passam de 11,8% em 2021 e 11,7% em 2022 para 5,1% em 2023; e o aumento do percentual de lesão corporal seguida de morte que passou de 1,8% em 2022 para 4,1% em 2023.”

Baixe o estudo completo: Panorama-da-Violencia-contra-criancas-e-adolescentes

Para Silvana Mariano, a partir da experiência de análise conduzida pelo Lesfem é possível crer que há casos de feminicídio invisibilizados, que acabam denunciados como homicídios ou lesões corporais seguidas de morte. Para ela, a identificação de casos envolvendo crianças é realmente mais desafiante “porque nos colocamos a refletir como teria sido aquela história se fosse um menino naquele contexto”, mas a hipótese de feminicídio deve ser a primeira a ser investigada.

“Como a sociedade brasileira é violenta, em termos gerais, discernir esse padrão geral de violência da violência de gênero requer mais refinamentos de informações sobre aquele contexto. Um aspecto que incide nessas experiências é que desde a mais tenra idade, as meninas são exigidas a oferecer obediência, demonstrar ‘bom comportamento’ e assumir responsabilidades. Os descontentamentos que resultam em espancamentos muitas vezes derivam dessas expectativas sociais, que são, portanto, orientadas por padrões de gênero como parâmetro para o comportamento das meninas. Há, ainda, a violência sexual mais frequente entre as meninas e, muitas vezes, o feminicídio decorre dessa violação. As meninas sofrem mais a violência sexual porque desde cedo são tomadas como objetos sexuais. O objetificação feminina não tem barreira de idade”, destaca.

Leia também: Polícia brasileira matou crianças como nunca em 2023, aponta Unicef

Infâncias silenciadas

O caso da menina Kameron é apenas um dos exemplos que conjuga violência sexual com resultado feminicídio. Em março de 2024, Néias-Observatório de Feminicídios Londrina lançou o informe especial “Infâncias silenciadas – Meninas vítimas do feminicídio”, no qual cita, além de Kameron, outras quatro meninas vitimadas pelo crime no Paraná em 2023 e dois casos emblemáticos da região: o da menina Sara Manuele da Silva, de 9 anos, assassinada em 2019 após um estupro (o padrastro foi condenado pelo crime) e da menina Eduarda Shigematsu, cujo pai e avó foram denunciados pelo crime, cometido em Rolândia (norte do Paraná) e aguardam julgamento.

Precisamos pensar que uma sociedade que consente com a objetificação de suas mulheres, desde a infância, revela um problema que transcende a individualidade dos algozes, evidenciando a necessidade de uma luta constante, em todas as frentes, pelo direito das mulheres a uma vida plena e digna em todas as fases de sua existência. (trecho do Informe de Néias)

Autores conhecidos

O estudo do Unicef confirma um dado conhecido por levantamentos anteriores: a imensa maioria dos autores de crimes contra meninas são conhecidos. No período entre 2021 e 2023, a proporção de autores conhecidos das vítimas de 0 a 4 anos foi de 72%, passando para 59% entre as de 5 a 9 anos, 83% entre as de 10 e 14 anos, e de 67% entre as jovens de 15 a 19 anos. Já no caso dos meninos, o percentual de autores conhecidos é de 84% entre as vítimas de 0 a 4 anos, de 75% entre os de 5 a 9 anos, caindo para 24% entre os de 10 a 14 anos, e para 13% entre os de 15 a 19 anos.

  • Prevenir e responder às violências

No estudo, Unicef e Fórum Brasileiro de Segurança Pública trazem recomendações a governos, pais, mães, responsáveis e a toda a sociedade sobre como proteger crianças e adolescentes da violência letal e sexual. Confira:

  • Não justificar nem banalizar a violência 
    Cada vida importa, e cada criança, cada adolescente deve ser protegido de todas as formas de violência. Toda pessoa que testemunhar, souber ou suspeitar de violências contra crianças e adolescentes deve denunciar. 
     
  • Controle do uso da força pelas polícias
    É fundamental trabalhar com as polícias protocolos, treinamentos e práticas voltadas à proteção de meninas e meninos. Em particular, há evidências robustas do impacto do uso das câmeras policiais, associado a protocolos e fluxos adequados, como a gravação contínua, na redução dos homicídios de adolescentes.  
     
  • Controle do uso de armas por civis A arma de fogo é responsável pela morte violenta de muitas crianças e adolescentes – entre aqueles com 15 a 19 anos, é o principal instrumento utilizado. Por isso, é essencial promover o controle do uso de armas por civis. 
     
  • Pautar e enfrentar o racismo estrutural Enfrentar o racismo estrutural é parte fundamental do esforço de não justificar e não banalizar a violência e do controle do uso da força pelas polícias junto à população negra. 
     
  • Compreender e enfrentar o fenômeno da violência doméstica É preciso produzir conhecimento sobre as interseções entre a violência doméstica contra mulheres e contra crianças, incluindo o impacto da violência doméstica contra mulheres no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Assim, será possível adotar políticas que integrem essas perspectivas para mudar comportamentos e prevenir e responder a casos de violência.  
     
  • Enfrentar normas restritivas e discriminatórias de gênero É preciso desconstruir padrões restritivos de gênero que fazem com que meninos sejam socializados a reproduzirem práticas violentas e meninas sejam socializadas em um contexto de objetificação e desigualdade de poder. Serviços que atuam com crianças e adolescentes e famílias, como escolas, têm papel fundamental para isso.  
     
  • Garantir atenção adequada aos casos de violência É urgente fortalecer os fluxos e protocolos do Sistema de Proteção a crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, no marco da Lei 13.431/2017.  
     
  • Capacitar os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes Eles são fundamentais para prevenir, identificar e responder às violências contra a infância e a adolescência. É caso, por exemplo, dos profissionais de segurança pública, que podem ser fortalecidos para uma abordagem mais humanizada.
     
  • Ampliar o acesso de meninas e meninos a canais de proteção Para prevenir e responder à violência, é importante garantir que crianças e adolescentes tenham acesso à informação, conheçam seus direitos, saibam identificar diferentes formas de violência e pedir ajuda. 
  • Melhorar os registros e investir em monitoramento e geração de evidências É necessário melhorar o registro de informações sobre os casos, assim como avançar no monitoramento ágil e constante para acompanhar tendências e investir em intervenções de forma mais rápida. 

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